sexta-feira, 10 de agosto de 2012

CIRCUITO SUPERIOR E INFERIOR: SINÔNIMOS PARA A ECONOMIA FORMAL E INFORMAL?

Por Silvana Cristina da Silva

A teoria dos dois circuitos da economia urbana foi criada por Milton Santos no final da década de 1960[1] para explicar a urbanização dos países periféricos. Alguns equívocos são comuns no uso dessa teoria, dos quais destacamos o uso de circuito superior e inferior como sinônimos de atividades formais e informais, respectivamente.

Proposta por Milton Santos, a teoria dos dois circuitos da economia urbana busca explicar como as cidades dos países periféricos como o Brasil funcionam a partir de dois subsistemas urbanos: o subsistema superior – composto pelas grandes empresas, bancos, atividades ligadas ao ramo da alta tecnologia – e o subsistema inferior – composto pelas atividades de pequena dimensão, com o uso de mão de obra intensiva, que se cria e se recria com pouco capital. A população da cidade, independente de sua classe de renda, possui necessidades permanentes. Em função da existência de trabalho perene e bem pago de um lado, surge o circuito superior; por outro, a existência de trabalho com baixa remuneração e intermitente, demanda a criação de formas de sobrevivência por grande parte da população. Então, surge o circuito inferior. Os dois subsistemas urbanos são formas de produzir, distribuir, comercializar e consumir que geram materialidades distintas, visíveis na paisagem urbana. No entanto, esses dois circuitos se relacionam dialeticamente a partir da complementaridade, subordinação e concorrência. As cidades expressam esses dois circuitos a partir dos lugares opacos e dos lugares luminosos, que são polaridades, mas não dualismos.

A teoria dos dois circuitos foi recentemente retomada e tem apresentando muitos estudos pertinentes e esclarecedores[2] para explicar o uso do território brasileiro na atualidade.

Entretanto, tem sido muito usual em alguns trabalhos o uso de circuito superior como sinônimo de atividade formal e circuito inferior como sinônimo de atividade informal. Denotando aplicações apressadas da teoria dos dois circuitos.

Essa teoria parte de outros princípios de método e visa interpretar a economia política da cidade segundo a magnitude dos capitais, o emprego de tecnologia e o nível organizacional nas atividades produtivas, buscando evidenciar os nexos estruturais entre pobreza e riqueza.

A interpretação das atividades urbanas, opondo um setor moderno e outro arcaico, vem sendo desenvolvida em várias áreas do conhecimento desde os anos de 1950, sobretudo opondo racionalidade, que seria o atributo central das atividades modernas e irracionalidade, que não incorporaria princípios racionais de produção. A partir de uma outra perspectiva teórica, a geográfica, uma das grandes contribuições de Milton Santos foi a insistência na ideia de que o circuito inferior não é irracional e nem ineficiente, porque encontramos racionalidade nessa forma de produzir e distribuir. Racionalidade essa que é capaz de gerar trabalho para muitos e com pouco capital[3]. O circuito inferior, onde há fabricação, comércio e serviços não-modernos, não pode ser reduzido, como se faz atualmente, a uma questão tributária, ou seja, simplesmente classificá-las de acordo com a obediência às normas do Estado.

A questão que se coloca sobre o formal e informal é que, em grande medida, essa dualidade não explica um processo mais profundo sobre o funcionamento da vida nos territórios periféricos, mais precisamente da vida urbana. A formação de nossas cidades está pautada na dependência de tecnologia. pela pobreza gerada por essa dependência e pelos processos de modernização, que acirram a pobreza no período atual. Logo, compreender a existência do comércio popular e das mais diferentes atividades que surgem na cidade para a sobrevivência exige que se pense além da regulação do Estado. Inclusive, as incessantes tentativas do Estado em combater os “informais” evidencia o significado do Estado, para que ele serve e a quem ele serve.

A teoria dos dois circuitos da economia urbana surge no sentido de explicar o funcionamento da cidade a partir da relação entre os grupos sociais privilegiados e os menos abastados dentro da sociedade de classes, sendo que tais grupos criam formas urbanas que revelam o profundo imbricamento entre esses grupos. Falar dos imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo é também falar das grandes empresas do comércio varejista do vestuário como C&A, Zara, Pernambucanas, Marisa, entre outras. Não é possível afirmar que essas empresas sejam totalmente formais. O circuito de produção da C&A, Zara, Pernambucas e Marisa[4] passa pelo uso de mão de obra imigrante precarizada e não formalizada. O funcionamento do circuito espacial de produção do vestuário sofreu reorganização na década de 1990 e a principal inovação das grandes empresas do ramo foi o uso da subcontratação de oficinas de costura de forma sistemática. A maioria dessas oficinas apresenta problemas em sua formalização.  Desta forma, a economia formal e informal se mistura e essa categorização perde o sentido. Além disso, a divisão da economia em formal e informal, do ponto de vista geográfico, não explica a relação entre a cidade rica e abastada e a cidade pobre.

Os dois circuitos formam o subsistema urbano, sendo um equívoco a análise da economia urbana por apenas um desses circuitos, pois eles funcionam de forma complementar, concorrente e o circuito inferior subordina-se ao circuito moderno das grandes empresas porque esse último controla a variáveis-chave do período. A base da distinção entre esses dois subsistemas não é o elemento formalidade ou informalidade e sim o modo de organização e o uso de capital e tecnologia.

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[1] Há vários artigos de Milton Santos publicados nas décadas de 1960 e 1970 sobre o tema. No entanto, é no livro o “Espaço Dividido: os dois circuitos da economia urbana”, que a teoria está sistematizada. Obra publicada primeiramente em francês: SANTOS, Milton. L’espace partagé. Les deux circuits de l’esconomie urbaine dês pays sous-développés. Paris, M-Th Génin. Librairies Techniques, 1975. A primeira edição em português é de 1979.
[2] Especialmente realizados pela Profa. Dra. María Laura Silveira.
[3]Entrevista com a Professora María Laura realizada em 02 de novembro de 2007. Revista Discente Expressões Geográficas. Florianópolis – SC, Nº04, p. 01-15, maio/2008. Disponível em < http://www.geograficas.cfh.ufsc.br/arquivo/ed04/entrevista.pdf> Acesso em 28 de julho de 2011.
[4] Informações da Superintendência do Trabalho do Estado de São Paulo. Veja reportagens no site da agência de notícias Repórter Brasil: http://www.reporterbrasil.org.br/.

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Silvana Cristina da Silva doutora em geografia pela Universidade Estadual Paulista – UNICAMP. Atualmente atua como professora-tutora (FUNDUNESP/UNESP de Presidente Prudente) do curso de especialização em Geografia da Rede de Formação de Professores do estado de São Paulo (REDEFOR).

5 comentários:

  1. Olá sou Beatriz,
    Gostaria de agradecer pois este texto esclareceu muitas duvidas que eu tinha acerca dos conceitos dos circuitos inferior e superior da economia. Obrigado.

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  2. Os dois circuitos da economia brasileira estamos estudando, agora ficou mais visível estudar sobre os dois circuitos da economia.

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  3. Existe algum outro autor que trabalhe o conceito de circuito misto?

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    1. Caro Enderson: talvez os trabalhos de Francisco de Oliveira (CEBRAP/USP) tragam ideias nessa linha, ao discutir, criticamente, a Razão Dualista. Em outro contexto, por certo. Mas a ideia do "misto" é talvez imprecisa, melhor seria trabalhar as complementaridades/oposições entre os circuitos e dimensões, sem pensar que complementar seja misto, fuja às oposições. Abraços, Luiz Antonio de Castro Santos, UFSB, Porto Seguro, Bahia.

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  4. não vamos jogar a água do banho fora, junto com o bebê. Os conceitos de informalidade e formalidade não são descartáveis, são extremamente úteis justamente quando empregados em sua complementaridade. Ou seja, há aqui uma dialética ainda oculta -- se ficarmos apenas com os circuitos de Milton -- que deve ser trazida à tona: circuitos ligados ao capital, (in)formalidades ligadas ao Estado. Obrigado. Professor Luiz Antonio de Castro Santos, UFSB.

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